quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Amour



E foi por algum sentido (ou nenhum) que Amour me fez voltar a escrever quase dois anos após o último post no blog. Isso porque após ver o filme fiquei transbordando de sensações, minha cabeça ferventando de ideias e meus dedos ansiosos por transformá-las em palavras, ao ponto que não pude me conter. Por isto, como um ato de amor,  me entrego novamente às palavras para tornar visível e público o que pra mim é intimo e particular. Sem pretensões, sem quereres, apenas sensações, palavras e impressões... 

Considerando que quem vai ler já viu o filme, pulo a etapa da sinopse (ainda assim, caso não tenha visto, acesse aqui) e me permito começar a falar do que interessa:

Em Amour, o grande trunfo de Haneke foi, como em outros filmes de sua filmografia, tratar de um tema real e possível, porém elevando-o a um patamar de proximidade assustador. É uma história simples, honesta e transparente que poderia acontecer com alguém da família, com um vizinho ou com nós mesmos, sem sobrecargas, arroubos ou excessos de roteiro ou ainda afetações de direção. De forma quase minimalista, com diálogos precisos, suaves e coerentes, conta a história de como um ser humano reagiu a degradação mental, física e emotiva do ser amado e de que maneira isso pôde manter-se coeso fundado na certeza irrevogável ao tempo que involuntária e já dilacerante de amar. 

Como se já não fosse o bastante a temática, houve ainda a possibilidade de realizar um filme calmo, respeitando o tempo que caberia numa vida possível; um recorte exato de uma história real semelhante. Isto pode ser ilustrado por cenas únicas, como a do close em Anne já em processo de degradação, deitada na cama com um olhar aprisionado, mirando um nada perturbador ou um George automatizado pela ausência do ser amado, agindo sem pressa ao cortar o ramo que trouxe do mercado flor a flor, ou ainda pelo belo silêncio confortante que nasce quando se está ao  lado de quem se ama sem necessariamente estar interagindo com ele, abastecendo-se apenas pela presença respeitosa; ambos imersos no exercício natural e intransferível da individualidade, representado naquele instante pela leitura de um jornal ou revista, ainda assim sem estar sozinho. Cenas que cuidadosamente absorvem o tempo da forma como o vivenciamos, reforçando a nossa aproximação com a história.


O que mais me tocou no filme é que em nenhum momento a expressão “eu te amo” é dita pelos protagonistas. Isso evoca que a razão do amor (se é que há) está em amar e não em verbalizar sua forma ou sentido. É um sentimento, e por sê-lo, cabe vivencia-lo e assisti-lo a partir das ações e posturas do ser amado. Muito além de palavras, são atos construídos com a simples e forte finalidade de cuidar e tornar feliz a quem se ama e desta forma se alimentar desta felicidade, elevando-se em plenitude.

Outro aspecto interessante é imaginar que não atrai Haneke esclarecer o que aconteceu com George. Isto porque o que importa é que Anne não está mais lá, e sem ela já não há vida. Sua vida se foi com ela. Os dias são contar de horas e eventos marcados pela rotina já pesada da ausência. Esta sensação é apresentada metaforicamente na cena em que George delira com a presença de Anne e eles juntos saem para passear. 

Quanto ao pombo, enquanto eu assistia não conseguia entender claramente o que estava tentando ser dito (mania de achar que nada é gratuito). No entanto, só quando já subiam os créditos que percebi que é uma obvia metáfora para a tentativa frustrante de George em manter Anne, que a mercê do tempo, escorria de suas mãos, fruto de um processo natural da vida. Por mais que buscasse, por mais que se empenhasse, por mais que não desistisse, não haveria meio de mantê-la da forma como era. Assim como o pombo, com sua trajetória imprevisível, que teimava em fugir-lhe entre os dedos.  Cabendo apenas, mesmo que figurando como um opressor libertá-la daquela condição triste e vazia de esperança que refletia seu estado que nada lembrava o vigor, alegria e determinação anterior.


A beleza de Amour está em perceber que não importa quanto tempo se viva com uma pessoa, sempre haverá uma nova situação e resposta inédita. Como o instante que George diz a Anne sentado à mesa que “existem muitas histórias sobre mim que você ainda não ouviu”. A maravilhosa extensão que o Amor tem de caber em sua reinvenção, ao tempo que excede em sua medida. Avesso ao sentimento de melancolia e tristeza que nos envolve imediatamente após ao corte seco da cena final, um amargor que não se altera por horas já distanciado do filme, é  justamente imaginar que é um filme belíssimo não exclusivamente por tratar de um sentimento de forma romantizada, mas sim em sua essência de sobreviver as adversidades e ao tempo. Afinal, o filme, como definiu um amigo meu “não é facil”. Verdade, não é. No entanto, daqui do meu cantinho, remexendo ideias e ressuscitando lembranças, na medida em que vou saboreando neste exato momento este mesmo sentimento do qual discorro, respondo dizendo “E o Amor, é?”.

Trailer:

sexta-feira, 1 de abril de 2011

VIPs

"eu quero ser piloto" (mas enquanto isso, pode ir sendo outras coisas...)
 Sabe aqueles filmes que você já vai com uma impressão de que não vai ser “aquiiilo”, mas acaba literalmente pagando pra ver por conta da ficha técnica? Pois então, com VIPs não foi nada diferente. Isto porque a história em si não me atraiu, eu não era conhecedora do caso original e só de ouvir me trouxe a lembrança imediata de outros filmes. Ainda assim achei que valeria a pena por conta do Wagner Moura e pelo fato do roteiro e produção estarem nas mãos do Bráulio Mantovani (Cidade de Deus/Tropa de elite I e II) e Fernando Meirelles (Cidade de Deus / O Jardineiro Fiel / Ensaio sobre a Cegueira) respectivamente.

O esforço em ser receptiva ao filme, mesmo sem interesse pela temática, acabou não sendo tortuoso. Isto porque VIPs é um filme com algumas saídas cômicas e narrativa simples que encantam o espectador. Seja por ver Wagner Moura imerso em tantas situações inusitadas, como a cena única em que imita Renato Russo (bateu até saudade), mas principalmente por presenciar o cinema nacional experimentando outros ares, saindo de caminhos marcados e fórmulas que estamos acostumados a ver, desde o sucesso de alguns filmes produto do cinema de retomada, e permitindo-se ser um filme misto, fazendo uso de elementos pertinentes aos gêneros de aventura, comédia e drama. 


Mesmo com este trunfo, sexto sentido feminino não é de falhar, por isto ao findar o filme ficou o sentimento de que é essencialmente a atuação do Wagner Moura quem carrega a trama, através de sua corrida frenética para absorver as mudanças do personagem (muito além de alterações aparentes como os cortes de cabelo) e expor as sensações mais exacerbadas de sua carreira, exprimindo pelo olhar, fala e posturas as novas faces adquiridas a cada ponto de virada da trama pelo seu personagem. No entanto sua atuação magnífica, como de costume, não é o suficiente para tornar VIPs um bom filme.

Dentro da perspectiva da história do homem que suplantava limites morais e sobrepunha a sua existência com a de outros desde muito jovem, afirmando outras personalidades à medida que novos nomes lhe sopravam ao acaso, Marcelo Nascimento tornou-se famoso pela sua ousadia e coragem em ser quem quisesse. Iniciando sua saga como sobrinho do dono de uma empresa rodoviária para conseguir uma viagem de graça e posteriormente tendo seu ápice ao internalizar a figura de uma pessoa pública, o herdeiro de uma grande companhia aérea, durante o carnaval em Recife. No filme a solução usada pelo diretor para manter o filme leve e alheio a julgamentos de conduta foi atribuir ao personagem esquizofrenia e um distúrbio de personalidade, justificando assim os atos e a trajetória incomum de Marcelo Nascimento.

A grande falta em VIPs se constitui no sentimento residual de que “algo mais” poderia ser feito, dito ou mostrado. Pela própria história que serviu de plano de fundo, baseada no livro “Vips: Histórias reais de um mentiroso”, outras tramas poderiam ter sido construídas formando uma rede mais interessante e não limitada a algumas cenas engraçadas e equilibradas pelo posto de epicentro assumido por Wagner, que por ser excelente em qualquer trabalho, encontrou neste papel uma fonte rica de aproveitamento para exibir seus talentos de ator. Uma maneira interessante de nos mostrar que o Capitão Nascimento tem seu lugar eterno e de destaque, no entanto outras portas precisam ser abertas para que corra o vento das novidades. Ainda assim fica evidente que invariavelmente um filme não se sustenta por uma atuação.

Outra falha foi não ter elevado a história a um patamar diferenciado, uma vez que já não havia o ineditismo temático. É inevitável e automático estabelecer semelhanças entre VIPs e dois outros filmes: “O Talentoso Ripley”, longa sobre um jovem que usurpa a vida de outro para usufruir de benefícios e mordomias e principalmente “Prenda-me se for capaz”, que conta a história do famoso falsificador Frank Abgnale Jr. Neste último a tensão necessária para condensar a boa trama se dá pelo contraponto entre Di Caprio e Hanks, levando ao espectador a torcer desde o princípio pelo anti-herói, fascinados com seu traquejo e perspicácia. Em VIPs esta tensão é propriamente exclusiva de Marcelo, refletida por sua ânsia primeiro por pilotar, depois por ser “alguém” tendo apenas o contraponto já nas cenas finais, com o início da perseguição policial. Não somos convidados a participar da sua trajetória, apenas acompanhamos recortes de fatos vivenciados rasgados pelo corte final em aberto.

De qualquer maneira vale o ingresso ver Wagner Moura à vontade e livre para mostrar que pode atuar com o que quiser. Mesmo que não seja uma história excepcional, suas faces sempre terão êxito pela entrega e verdade que lhe são próprias e sazonalmente emprestadas aos seus personagens. De alguma maneira o subtítulo do filme “quem você quer que ele seja” associado à imagem de “Marcelo” (um mosaico de suas faces ao longo do filme) cabe como uma luva a Wagner Moura, mais uma dica de que (fato) o filme é fundamentalmente a sua interpretação, mais uma batalha vencida pelo ator multifacetado e invariavelmente brilhante, fazendo o que ele sabe de melhor, sendo quem ele quiser!

Trailer:

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Cisne Negro (Black Swan)


eu já escuto teus sinais...


(Minha gente, esse texto contem um teor elevadíssimo de spoilers, portanto se não viu, não leia...aliás, vá ver logo e volte!!!)

Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Fato? Sim, isso todo mundo aprende na aula de física, no entanto, pergunto: duas personalidades antagônicas podem se confrontar e permanecer vivendo em um mesmo corpo? Cisne negro, intimamente e acima de tudo é um filme que expressa a luta entre duas personalidades. Uma evidente e outra latente, entre uma e outra, uma lacuna ínfima, soldada por um desejo obsessivo e incosequente de viver a perfeição.

O cenário dessa história poderia ser qualquer um, mas quis o destino e principalmente Darren Aronofsky que fosse uma companhia de Ballet. O que curiosamente já nos surpreende, dado o imaginário coletivo que permeia tradicionalmente a cerca deste universo, toda beleza  e romantismo que este estilo de dança evoca. Mas, como profetiza um de seus personagens principais logo no início, esta é uma história que será contada de forma intensa e visceral.


Para começar é preciso saber que Cisne Negro conta a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina extremamente dedicada e comprometida com sua arte, que anseia por seu momento especial dentro da companhia. A grande chance advém com o anuncio de que será a prima ballerina na composição O Lago dos Cisnes sob a nova leitura do clássico vislumbrada pelo diretor Thomas Leroy (Vincent Cassel), porém encarnando o papel da Rainha Cisne, o que significa representar as irmãs gêmeas Odette e Odile, o cisne branco e o cisne negro respectivamente. O que instaneamente arrouba como realização de um sonho, fazendo-a derramar lágrimas de felicidade, reprimidas em público e libertas em um vão de banheiro, se revela lentamente como um pesadelo interminável, uma espiral sufocante e aterradora, que por fim responderá a pergunta: qual o limite para se atingir a perfeição?


Isto porque Nina já é uma bailarina tecnicamente perfeita, exigente consigo mesma e reconhecida por isso. Transparece uma menina meiga, doce, cálida, virginal...características condizentes com uma das faces da sua atuação, a do cisne branco, sendo isto verbalizado em diversos momentos  e de forma desafiadora e um tanto grosseira por Leroy, diretor da companhia. Em contrapartida lhe falta imprimir sentimento em sua dança. Os traços de ousadia, imprevisibilidade, sensualidade, força e fascínio, presentes e necessários para compor o cisne negro, não lhe são familiares, pois não fazem parte da sua vida programada e unicamente direcionada a sua arte. Ao reconhecer esta “falta”, tem início uma corrida frenética, de mão única e de conseqüências impensáveis de Nina em busca do seu cisne negro.

Esta busca pelo personagem perpassa obrigatoriamente pela busca e reconhecimento do ser quanto indivíduo. Percebemos que Nina não se vê enquanto indivíduo, apenas enquanto dançarina. Essa priorização da figura antes da pessoa é evidenciada logo no inicio do filme, quando apresenta a rotina da Nina, que acorda e já entra em uma série de exercícios, se aquecendo, costurando suas sapatilhas... tudo sempre em volta do Ballet. Um momento que demonstra isto claramente é quando um dos garotos que estão na boate, “Tom/Jerry”, pergunta “quem é você”, ela responde “eu sou uma bailarina”, ao invés de dizer seu nome, que é obviamente a resposta que o rapaz espera.

Para ir além, ao menos do que eu percebi, vou escrever por partes o que identifiquei de significativamente interessante e relevante, uma análise particular dos signos dispostos no filme, para a compreensão dos significados que nos são apresentados.

Nina em Lily

Em contraponto a Nina, recém chegada na academia, aparece Lily (Mila Kunis). Lily é, desde o primeiro momento, a personificação do cisne negro. Seu olhar, sua pele, seu sorriso e principalmente sua atitude evocam involuntariamente a imagem que Nina precisa ter para ser perfeita em sua composição siamesa. Isto fica claro para o espectador desde o princípio e é reforçado durante todo filme. Enquanto Lily, morena altiva, sempre veste tons escuros e está sempre leve e sorridente, com voz penetrante e certeira, Nina, branca e quase gélida, aparece com seus tons pastéis, seu ar tenso, quase choroso e principalmente sua voz fina e quase inaudível, como quem pede desculpas a todo tempo.


Este recurso das cores é utilizado inclusive para demarcar o início da transformação de Nina. Na boate com Lily, observa a conduta da “amiga” e, ainda incerta sobre sua decisão de ter saído de casa, chega a negar ecstasy oferecido por Lily para que ela “relaxe”. No entanto, após vestir a blusa preta emprestada pela mesma, começa a beber, mesmo sabendo que a droga havia sido dissolvida na bebida, a dançar sensualmente e até envolver-se com um homem desconhecido. É nesta noite que tem uma forte alucinação e consegue libertar todo prazer reprimido através de uma fantasia sexual com Lily, que a leva ao tão desejado orgasmo (apesar das duas tentativas anteriores). Neste momento um detalhe magnífico é percebido em Lily: as asas de uma ave (podemos supor, um cisne) negras lhe tomam as costas e parecem mover-se, como se fisicamente Lily, representativamente o cisne negro, estivesse tomando vida e apoderando-se de Nina, tal qual era necessário.

A ideia que tenho é que ambos “os cisnes”, leia-se traços de personalidade, viviam desde sempre em Nina. Porém todos os estímulos recebidos em sua vida até então só deram espaço para que o “branco” se revelasse: sua mãe superprotetora, sua vida de regras, seu quarto infantilizado, sua postura ante o mundo. Não havia espaço para aflorar as características do “cisne negro” uma vez que todo o meio e posturas não corroboram para que ela entre em contato com essa face.  Quando Nina aventura-se a situações e ambientes que servem como pontes para que ela entre em contato com o “preto”, indubitavelmente ele está lá e aparece majestoso. Por isso desse ponto em diante, sempre haverá um amadurecimento dessa relação de maneira que haja um espaço crescente para que ele surja em definitivo.

A metáfora da transformação física é a materialização desta transformação psicológica. O que a princípio era apenas uma coceira, dá espaço para que surjam penas, unam-se os dedos, olhos tornem-se rubros, e pernas se alterem. O que acontece na mente, reflete na forma como se percebe e vivencia o mundo e principalmente a si mesma. Ironicamente a parede do quarto de Nina é toda forrada com imagens de borboleta em diversos tons de rosa. Todo mundo sabe que borboleta é um dos signos utilizados para expressar transformação. É uma das pistas sobre a metamorfose que a personagem terá que sofrer para alcançar seu vôo final. Curiosamente, é em seu quarto que muitas dessas fases da transformação acontecem, como uma espécie de casulo pré-metamorfose: a fantasia com Lily, sua tentativa de romper barreiras através do sexo e finalmente sua transmutação em cisne.

Ainda nesta linha, o fato de Nina desde o primeiro momento projetar em Lily o seu cisne negro faz com que haja um desejo sexual incisivo, como se a única alternativa para adquirir suas virtudes fosse devorá-la, possuí-la antropofagicamente absorvendo o que “lhe falta”. Inconscientemente essa projeção e consequentemente o desejo de ser possuidora dessas características levou Nina a obsessão, gerando alucinações e uma confusão mental que não permitirá que ela desassocie, em um certo ponto, o real do imaginário.


Nina em Beth

Desde a primeira vez que Beth (Winona Ryder) aparece no filme, eternizada em um full banner da companhia anunciando os clássicos de inverno, percebemos um ar misto de respeito e inveja de Nina em relação a ela. Logo em seguida, no camarim, enquanto as outras bailarinas do corpo de baile difamam a então prima ballerina da companhia, Nina é a única que a defende, com um quase sussurro, expressando sua admiração à então estrela do ballet.


Essas impressões iniciais são preciosas para entender o que acontece a seguir no andamento da trama. Pouco antes do acidente, Nina e Beth se confrontam e fica claro que a figura da loucura que Beth representa naquele momento é um prenuncio do que acontecerá com Nina. Uma espécie de efeito colateral do sucesso que ela começa a ter a partir do anuncio de que ela será o “novo rosto” da companhia.

No entanto o que me intrigou foi descobrir qual o sentido de Nina roubar os objetos pessoais de Beth. Entendo que “vestir-se” de Beth se constitui uma espécie de proteção física. As coisas de Beth lhe dão segurança para assumir a figura da perfeição que deseja alcançar. Quando ela vai falar que está  pronta para o papel a Leroy, usa o batom vermelho infalível, que lhe garante a imagem de confiança e sedução. Sempre que dança, usa os brincos como se fossem escudos que a protegessem dos sussurros e sorrisos aos cantos, desafiadores da sua nova posição. Como um amuleto sagrado, protegendo-a da possibilidade mais remota de fracasso ao tempo que acredita que a transformação externa lhe trará mudanças comportamentais. “Beth dança de uma maneira que dá medo e por alguns momentos pareceu perfeita”, diz Leroy, e é esta imagem de Beth que Nina quer agregar, daí a incorporação desses elementos externos.

Desnorteada, quando visita Beth pela segunda vez no hospital, começa a devolver-lhe seus objetos, imaginando que aquele gesto faria com que tudo voltasse a ser como antes, atuando como se desfizesse uma maldição, crédula de que suas alucinações são reais, e culpando-se por ter desejado o lugar que era de Beth, vestindo-se de sua face para assumir uma segurança que não lhe pertence. Nesta cena o que mais interessa é o fato de Nina começar a alucinar vendo Beth ferir-se no rosto com uma lixa de unha e logo em seguida Nina vê sua própria face sendo mutilada na figura de Beth. Isto, creio, representa a desconstrução da perfeição que ela via em ser Beth, da impossibilidade real de assumir algo que não é particular seu e indubitavelmente já havia se perdido. Essa visão recorrente que Nina tem de ver-se em outras figuras, revela uma pessoa que não se encontra em si, mas projeta-se naqueles que deseja ser. É assim com Lily e com Beth, suas projeções físicas do que lhe falta para ser perfeita e da referencia maior da perfeição, respectivamente.

Nina e as barreiras

Nas primeiras cenas é possível desvendar com clareza a relevância que Érica (Barbara Hershey), mãe de Nina, tem em sua vida. Típica mãe que vive em função dos sonhos da filha que de alguma maneira reveste-se das suas frustrações como se fosse uma segunda chance de viver seu próprio sonho. Pelo que se nota, Érica abandonou sua “carreira” de bailarina para “ter” Nina e cuidar dela. E durante todo filme é apenas isso que ela faz além de chorar e pintar faces desconcertantes. Estes desenhos inclusive me intrigaram e fizeram imaginar que é uma tentativa desesperada de reconhecer-se, por isso são autoretratos que funcionam como espelhos. Deformados e em grande quantidade revelam-se como uma tentativa desesperada de ter uma referência, de permanecer existindo, já que atua como coadjuvante da vida de Nina. Refletem ainda uma forma de manter-se no foco, e não perder-se meio ao universo que criou e que gira apenas ao redor de sua filha.
Essa relação que estimula ao tempo que castra, admira e ao mesmo tempo inveja o sucesso, serve como molde para as ações de Nina. De certo modo a construção do ambiente doméstico da maneira como ele é apresentado corrobora para que Nina não mantenha-se de acordo com as normas e padrões morais, valores que precisam ser quebrados para se alcançar a essência de ser um cisne negro. O rompimento dessas barreiras solidificadas durante anos é tão intenso e aterrorizante ao ponto de transcender a matéria. Seu corpo, mente e alma, em consonância assumem a forma do pássaro que hibernava em algum canto intocado do seu ser.

Para que Nina encontrasse em si seu lado afim as características necessárias para incorporar o cisne negro, era necessário ir além. Afinal, como imprimir uma imagem e gerar um sentimento de algo relacionado a uma situação que nunca foi vivenciada? Ser sensual, exilar desejo e até uma a partir de uma figura inócua que não lidar com seus desejos simplesmente porque, aparentemente, não os tem?

Por isso o sexo é usado no filme como uma ponte para que Nina avance e amadureça entrando em contato com sua própria sexualidade, com seu íntimo e principalmente com traços da sua própria personalidade que não encontrava terreno para aflorar. O sexo aqui, que tantas emoções e controvérsias causaram ao publico, tem a função primeira de quebrar as barreiras morais e físicas presentes em Nina para que ela seja conhecedora das suas necessidades e desejos e os alimente de todas as formas, fortalecendo sua personalidade com os traços que são próprios, porém que até então não estavam visíveis.


Leroy também tem sua parcela grandiosa de propulsor para que Nina acenda essas características. É ele quem pede para que ela se masturbe, ele quem a provoca sexualmente numa dança sedutora e acima de tudo, a todo o momento incita que ela adquira as virtudes que ele busca em seu cisne negro. Seja mandando que ela refaça passos que tecnicamente já estão perfeitos, mas que não transmitem emoção “um cadáver’, em seus termos, ou ainda instigando subliminarmente para que ela observe a forma livre e sensual como Lily se porta e dança, imprecisa, porém sincera. Todos esses elementos reforçam a projeção que Nina já tem do cisne negro em Lily e acima de tudo evocam que a natureza adormecida se manifeste.


Sua fala, “você é a única pessoa no seu caminho, está na hora de livra-se dela” resume com maestria toda a corrida do filme. O porvir é justamente a morte do cisne branco, único obstáculo que deveria verdadeiramente ser extinto, deixando espaço necessário e indispensável para o cisne negro reinar.

Para ir adiante, cabe o que de mais importante nesse texto. O personagem mais intrigante e indispensável no filme: o espelho.

Nina no espelho

Antes de tudo vale dizer a função social que este objeto possui. É através dele que nos vemos pela primeira vez com exatidão, de maneira que ele nos autoapresenta nossa forma e aspecto de acordo como o mundo o vê. O espelho, creio, tem a função de introduzir a nos mesmos nossa imagem da maneira mais fiel que um objeto pode fazer. No entanto, para além das percepções físicas existem as percepções circunstancias que são moldadas pela maneira que nos sentimos. Se estivermos tristes, nos percebemos de uma maneira menos generosa que o habitual. Se estivermos felizes, buscamos o belo mesmo que minimamente. Desta forma vale dizer que o espelho nos diz necessariamente quem somos, pois ele nos apresenta a nossa face da maneira que imaginamos que estamos sendo vistos.


Dito isto, é possível perceber que em todo o filme há espelhos ou objetos que internalizam esta função. Logo no início do filme, Nina aparece indo para a academia de metrô e observa pela janela, que com o fundo escuro, reflete a sua imagem e o interior do metro. É inclusive nesta cena que Lily aparece pela primeira vez. Em sua casa existem espelhos por todos os cômodos, na parede da ante-sala, na sala, na cozinha, no corredor, no quarto da mãe, no banheiro e vários outros em seu próprio quarto. Como se ampliasse a dimensão de Nina pelo espaço que a circunda, e imputasse a si mesma sua presença, aprisionando sua imagem ainda não vivenciada, seu lado “obscuro” e de alguma forma oprimido pelos mecanismos que desenvolveu durante toda a sua vida. Daí a importância magma deste objeto na trama, é ele que ao tempo que reforça aparentemente sua imagem habitual, desperta e evidencia as mudanças físicas que farão brotar o cisne negro de Nina. A academia é um aquário de espelhos, exigentes em sua perfeição técnica, inaudíveis em seus comentários, fazendo apenas com que o próprio olhar de Nina fosse lhe lançado de volta com ares de “um pouco mais”. No camarim sempre está de frente para o espelho, confrontando sua imagem real com a projetada. Vale lembrar ainda de quando Leroy aparece durante a aula, minutos antes de anunciar o novo espetáculo e a seleção surpresa, é visto através olhar de Nina lançado a imagem dele refletida no espelho. A própria sala do diretor é forrada por espelhos, ampliando o ambiente composto basicamente de objetos brancos e pretos, assim como sua casa. Curiosamente, nesta mesma aula, os dançarinos estão todos dispostos em branco, preto e cinza, todos que Leroy toca estão de preto e ao desafiar “quem de vocês poderá incorporar os dois cisnes, o branco e o negro” sua imagem surge duplamente projetada em dois espelhos distintos, uma mensagem discreta porém pertinente à temática do filme.

São duas as cenas indispensáveis para compreender a transição do cisne branco para o negro em sua fase final e que tem o espelho como canalizador dessa transformação. Primeiro quando Nina retorna da sua noite de liberação, supostamente acompanhada por Lily e chega em casa. Acelerada ela satiriza sua própria condição com a mãe. Se prestar um pouquinho de atenção é possível ver que Lily aparece apenas refletida no espelho, como uma sombra nefasta, observando a discussão, tal qual o cisne negro em Nina, aprisionando e prestes a possuí-la. Um detalhe sutil, mas extremamente importante é o take que mostra que de uma única imagem refletida no espelho saem, em direções opostas, Lily e Nina, do mesmo eixo, convivendo em um mesmo corpo, duas representações de personalidades, como ambos os cisnes.


A segunda e mais importante é a cena da incorporação do cisne negro. Ao retornar do primeiro ato do espetáculo, Nina depara-se com Lily vestida de cisne negro e as duas iniciam um embate físico disputando pela representação do papel. No entanto o que ocorre é um duelo entre a Nina "real "e a Nina “imaginária” aprisionada no espelho, sedenta por liberdade. Quando Nina empurra “Lily” e esta cai sob os cacos de vidro, a face de Lily é substituída pela de Nina que diz “ agora é a minha vez” é como se o cisne negro se libertasse e revelasse seu desejo, porém, ao tempo que tenta sufocar Nina, representando o cisne branco, e esta inicia sua metamorfose física, é como se houvesse uma transferência, portanto quando ela responde em troca “é a minha vez!” assassinando, supostamente Lily (seu rosto reaparece), está, de fato, extinguindo as barreiras físicas e mentais que impossibilitaram até este momento o surgimento do cisne negro, a absorção do seu corpo e faculdades de todo gênero. Para o cisne negro assumir a forma é preciso “morrer” o cisne branco, matá-lo e ocupar o corpo (“a única no seu caminho, é você mesma”, nas palavras proféticas de Leroy). E feito isto liberta completamente, dando confiança, principalmente por extinguir, em sua cabeça, a única barreira que lhe impede de aflorar seu cisne negro. Ao matar a projeção, assume-se o lugar dela.  E, não por acaso que o objeto utilizado para “matar” Lily é um pedaço de espelho. Genial.

Nina e a Perfeição

Nina, num primeiro momento, mostra-se assustada por ter cometido o assassinato...mas logo em seguida, acalma a respiração, e compreende-se enquanto ser...reina soberana sobre o corpo que tanto lhe quis, mas não sabia como acessá-lo, transformando duplamente desejo em satisfação, um prazer aguardado e alcançado. Neste momento é absolutamente perfeita a comunicação que Natalie Portman faz com a câmera, encarando-a e, por conseguinte a platéia, apresentando-se e imperando por todos os espaços. É possível ver em segundos a transformação da personagem e o entendimento do seu poder e novas virtudes. Do desespero ao êxtase.


Nina assume uma postura assustadoramente confiante, evidenciada pelo olhar, pela respiração. Ao caminhar entre as outras bailarinas sem emitir uma palavra sequer, é agressivamente notória sua presença e soberania, ao fundo o som do movimento das asas e um respirar faminto de um pássaro, prestes a atacar e deixar sua marca. Entra no penúltimo ato do espetáculo em pas de deux e surpreende primeiro, sensual sem vulgaridade, seduz o dançarino e logo após, numa atitude ousada e peculiar, o diretor com um beijo público. Depois retorna sozinha nos presenteando com o ápice desta incorporação que é a transmutação gradual da figura humana em pássaro, ao tempo da dança, num avanço enlouquecedor, rasgando o palco em deboulés até centralizar-se e surtar em maravilhosos fouttés en tournant, numa das cenas mais enlouquecedoras que o cinema já produziu, assistimos com os olhos congelados desejando que aquele momento dure para sempre, até que, num sobressalto, ele se encerra e assistimos, ainda pasmos, ser lançado aos aplausos a figura humana, e à sombra, imponente e grandioso, o duplo cisne. Seu coração ainda bate? O meu parou neste exato momento...e foi nesta hora que me deu vontade de levantar e gritar um daqueles palavrões bem expressivos que denotam da melhor forma a nossa admiração e contentamento. Perfeito!

                                                
No entanto, ao voltar para o camarim e cair na real da sua loucura, com a visita inesperada da real Lily, surge a fragilidade e a dor se revela, mas ainda assim, resigna-se, recompõe-se e tal qual cisne, ferido e com forças esvaindo (exatamente conforme a história que esta sendo contada no ballet), volta ao palco para o ato final, continua dançando..até o cume do precipício num arroubo ...onde lança-se a morte...e por fim, a liberdade. Um final liricamente terrífico de um sonho sob forma de pesadelo.

A metalinguagem em Cisne Negro

Depois de todo esse devaneio, meu foco de micro situações dentro de todo filme, cabe analisar ainda que no sentido macro a história de Nina se confunde imageticamente com a do próprio Lago dos Cisnes. Desta forma temos uma história similar cinematográfica acontecendo ao tempo em que se constrói a própria história da apresentação do ballet clássico, ou seja, a construção da temática do filme se realiza a medida que a composição do ballet esta sendo criada. O final, de fato, representa a morte do cisne branco, de Odette e consequentemente de Nina, vencida pela força e encantos do cisne negro.

Epílogo

Não há como terminar o texto sem elogiar de toda a forma a atuação inesquecível de Portman. A saga de Nina é inteira construída sob a tensão de uma “falta” e esta ausência que causa desespero é representada com perfeição através principalmente de um olhar que busca a todo tempo aprovação e um corpo que anseia pela excelência. Vincent Cassel está extremamente convincente como diretor da companhia, passeando firmemente entre os personagens, marcando sua presença em todas as aparições. Mila Kunis aparece como se tivesse nascido para fazer este papel, sensual em sua voz rouca e respirar envolvente, com negros e evidentes olhos, atentos a toda e qualquer oscilação no ambiente. Barbara Hershey desfila sutilmente, flúida como água, que tanto alimenta, quanto destrói e por fim Winona Ryder, mesmo que em aparições curtas, marca fortemente presença com sua personagem autodestrutiva.

A câmera próxima e por vezes trêmula transmite a perturbação mental que a personagem principal sofre nos deixando incômodos em certos momentos, capazes de vivenciar o sentimento de Nina. Todas as cenas de dança foram ornamentadas com muito cuidado e maestria, com câmeras velozes, que nos fazem sentir pertencente aquele quadro, nos aproximando como se bailássemos no coração dos dançarinos., um presente valioso para quem ama ballet, como eu. A trilha, de Clint Mansell, povoa o filme sendo toda composta de variações do clássico “O lago dos cisnes” de Tchaikovsky ajustada a todas as situações, em todo o canto, na caixa de música, no celular, na boate, na academia e lógico, na apresentação final, tornando-se mais um personagem da trama, o elemento que introduz o tom de cada cena. A fotografia dialoga o tempo todo com o jogo entre o branco e preto, favorecendo que a áurea estética do filme estivesse em harmonia com a temática.

Todo o filme foi conduzido com primor técnico e tensão necessária para que se revelasse a composição perfeita A direção de Darren Aronofsky, já plausível em Réquiem para um sonho (que levanta a mesma temática dramática ao revelar as conseqüências do abuso das drogas de diferentes tipos e toda obsessão dos personagens na busca pela realização de um sonho particular – lhe parece familiar?), foi primorosa na forma magnífica de montar seu filme, sendo uma fala de Leroy utilizada estrategicamente já para apontar o norte que o filme seguiria, uma pista valiosa que revelava que seu filme seria “ uma história que já foi contada diversas vezes, mas nunca desta forma, sem preconceitos, uma abordagem profunda e visceral” Não há a menor dúvida para mim que este êxito foi alcançado, pois se perfeição não significa apenas controle, como o filme nos mostra, mas sim saber deixar-se levar, assim como Nina entregou-se e viveu sua perfeição.


Cisne Negro, acima de todas as interpretações possíveis é um filme que merece um lugar de destaque na história do cinema principalmente por reinventar com contornos de thriller psicológico uma das histórias mais romantizadas do ballet, desconstruindo elementos como beleza, paixão, dedicação e perfeição, reconstruindo novas formas e principalmente variações de acordo com as vivências e percepções individuais de cada um. Vi o filme três vezes no cinema e é curioso observar as reações diversas do público: seja do seu amigo que foi apenas para ver a Portman numa das cenas mais comentadas do ano, de sexo sem puderes com outra mulher, seja da sua mãe que esperava uma história romantizada, dos amigos que riam em momentos inesperados, seja de sua amiga que saiu com dúvidas e não entendeu direito o filme, mas seja principalmente por você e por cada cena que fez com que sua reação revelasse mais algo sobre você mesmo do que sobre o próprio filme. A principio me surpreendi “torcendo” pela morte do cisne branco e consequente aparição e domínio completo do cisne negro sobre a personagem, um certo masoquismo e crueldade por desejar o triunfo do “anti-herói”, mas ao decorrer do filme, entendi que manter uma visão maniqueísta não estaria de acordo com o propósito do filme, afinal não se trata de uma luta do bem contra o mal, mas claramente uma disputa entre o que se acredita ser, e o que se é de verdade.

Despir-se de máscaras e permitir que aflorem faces que nós mesmos desconhecemos é um processo natural que qualquer indivíduo vivencia, no entanto pode se tornar obsessivo e horripilante se isto é algo que está mais nos outros do que em nós. Não há como sair de uma sessão deste filme sem especular minimamente que seja qual face de nós anda hibernando, escondida nas brumas da rotina que nos aprisionamos e nos laços invisíveis que estabelecemos. Talvez, a grandiosidade desse filme seja justamente fazer com que percebamos que dentro das histórias batidas que vivemos diariamente, sempre há espaço para que um novo “eu” surja e conte uma nova e surpreendente história sobre nós mesmos.



Nota:

1. Amadas amigas psicólogas perdoem meus devaneios...
2. Amados amigos, ainda ficaram algumas coisas por dizer, como sobre o ballet e a relação que visualizei entre Cisne Negro e Réquiem para um sonho. Fica para uma parte 2, porque aqui superlotou...kkkkk

Trailer legendado

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2

Agora o bicho pegou!
Sabe aquelas conversas que a gente tem quando menos espera numa quinta-feira a noite qualquer, num bar qualquer, de um bairro qualquer, mas que nos levam para outro lugar? Aquele amigo seu que tem um jeito único e invejavelmente eficaz de contar uma historia própria, que senta e fica horas falando enquanto você atentamente procura não deixar cair nenhum detalhe da história hipnotizante que ele cuidadosamente revela à você...sabe? Então, meu camarada, é isso que você vai presenciar ao entrar numa sessão de Tropa de Elite 2.

Se você me conhece ou já leu algum texto meu sabe que tenho uma dificuldade imensa em assistir filmes que utilizam o recurso voice over ou narrativa em off, como queira. No entanto, nos dois filmes, esse recurso trouxe uma aproximação necessária ao espectador, o que foi elevado neste segundo filme. Durante toda projeção somos abraçados pela voz de Roberto Nascimento que narra pontualmente os fatos da trama. Sua linguagem popular e um tanto burlesca, seus vocativos que nos tornam “parceiros”, aproximam e nos fazem sentir intencionalmente personagens desta história.

Nos instantes iniciais do longa, passados dez anos, acompanhamos a operação conduzida por Nascimento, agora Comandante Geral do BOPE, frente a uma rebelião em Bangu 1 e simultaneamente a uma palestra em defesa dos Diretos Humanos, ministrada fervorosamente pelo professor de História Diego Fraga. Uma ação deliberada do batalhão comandada em campo pelo Capitão André Mathias resulta num desfecho não programado que trará conseqüências diferenciadas, a princípio, para cada um dos três envolvidos nessa situação, e que se cruzarão brevemente tentando desfazer o movimento de uma engrenagem que se revelará, ao tempo, muito maior e mais firme do que se espera. 


O resultado da sanguinária atuação do BOPE em Bangu 1 faz com que Nascimento “caia para cima”, como ele mesmo define, sendo elevado a Sub-Secretario de Segurança Pública do Rio de Janeiro, o que representa, confessado a nós pelo mesmo, uma oportunidade ímpar (já que chegou onde nenhum outro do bope foi) de desconstruir as redes de trafico dos morros cariocas, empregando recursos pesados (olha o caveirão aê) para que o objetivo seja alcançado. O problema é que, ao fazer isso, inconscientemente, Nascimento e sua nova estratégia, criam oportunidade para um dos maiores problemas sociais se instalarem nestes espaços: As milícias, apresentadas de forma genial por Padilha são apenas a ponta do iceberg gigantesco que sustenta a rede de corrupção no País.

Preciso, eficaz, inteligente e coeso. Não seria exagero algum dizer que Tropa de Elite 2, pelas mãos, olhos e alma de José Padilha, alcança brilhantemente a essência de cada uma dessas palavras de maneira a deixar o espectador entorpecido com o primor e qualidade técnica da película. O filme é mais maduro, profundo e abrangente porque todos os envolvidos no processo evoluíram também. O roteiro, feito a quatro mãos, casadinha entre José Padilha e Bráulio Mantovani, abre caminho para a saída do microambiente do tráfico nos morros, amplitude da primeira leitura, e apresenta o macro, forma como tudo esta interligado na teia firme da corrupção que vai de políticos do alto escalão a traficantes, passando por policiais, apresentadores de programas sensacionalistas (estourados em todo país) entre outros. Somos cúmplices de Nascimento desde o início e compartilhamos instantaneamente suas sensações de revolta e impotência (o que não o impede de ir adiante), ao se deparar frente a uma realidade que quanto mais se cava, mais feio, fedido e fundo fica. A rede aqui é muito maior, e a sensação de que ela é indestrutível é assustadora.

 
Além do roteiro o avanço de nível de Tropa 2 se da muito em conseqüência de outros fatores cruciais: direção e atores. O Capitão Nascimento aparece mais velho fisicamente, em sua expressão cansada, seus cabelos brancos e o pesar notável em seus ombros, olhar abatido e quase deprimido. Tais evidencias são reflexos do processo de transformação interna que o personagem vivencia, suas lutas, anseios e conceitos vão sendo desconstruídos ao tempo que reconstruídos junto com a trama. Wagner Moura, no melhor personagem da sua carreia, torna-se icônico ao incorporar essas características físicas e psicológicas de maneira natural e extremamente convincente representando um homem que aparenta carregar todas as dores do mundo e ainda precisa confrontar-se com suas crenças e valores para saber como seguir a diante, além de enfrentar conflitos na vida pessoal.  Apesar desse aparente desgaste sabemos a todo tempo que aquele Nascimento altivo e potente, de voz segura e algoz, permanece em seu discurso e presença se mantendo forte e até mais agressivo, em sua luta incansável para “foder o sistema”.

Não apenas Wagner Moura, mas todo o elenco é exato em suas atuações e o amadurecimento dos personagens é uma nota fundamental para a composição única do filme. André Mathias (André Ramiro) retorna e agrada, revelando a cada cena traços de Nascimento, seu tutor no primeiro filme, criando situações inesquecíveis de contraponto entre o criador e a criatura; Seu Jorge aparece logo no começo como Beirada e é tão possível que assusta, não apenas pela caracterização, mas pela postura e veracidade dramática; Temos ainda, numa primeira instância, o anti-herói Diogo Fraga, numa apaixonada atuação de Irandhir Santos, que avança em sua trajetória composta de ideais de maneira firme e crescente, garantindo momentos de exaltação e se colocando como responsável por nos fazer sentir confusos: no começo o detestamos, depois o amamos por percebemos que será ele quem poderá ser o condutor da vitória de Nascimento; Um Fábio (Milhen Cortaz) ainda cômico e irritantemente possível, que permite, junto com outros policiais, que os famosos jargões permanecessem na trama, para serem reproduzidos em cada canto do pais;  Um Fortunato (André Mattos), perfeitamente construído de acordo com as infinitas referências reais que adentram nossas casas diariamente, sensacionalista e alimentando-se do sangue que jorra nas esquinas, deformando as opiniões, manipulando a verdade de acordo com seus interesses; e por último, mas não menos importante, um Rocha (Sandro Rocha)... revelando o olhar amplo de Padilha que resgata um personagem que aparece como ponta no primeiro Tropa e o incorpora neste novo filme num outro patamar, situando-o como eixo de toda trama, cerne da sujeira, tecedor da teia de corrupção que interliga a polícia, o governo e o povo.  Rocha, neste filme, é o personagem que passeia livremente nestes ambientes de maneira a ir costurando a trama de corrupção com fios fortes e intangíveis, ao ponto que transparece uma figura simpática e amistosa. Mais um ponto para a direção.


Sair do mata-mata frio, dos treinamentos sofríveis e outras previas dadas em Tropa 1 e imergir os personagens numa dimensão política/ideológica que compõe o sistema que rege as relações que desenvolvemos diariamente, foi o grande e eficaz salto de Padilha em Tropa 2. Um terror visível, mas que fazemos questão de naturalizar ou tornar invisível ou apenas comum dentro da engrenagem acionada por quem acusamos de corruptos, mas que é movida por nós, ao tão singelo e simples quanto significativo ato de apertar um botão de “confirma” a cada eleição. Por isso, “parceiro”, que intencionalmente Padilha, através de Nascimento, insere cada um de nós na trama desde o começo, pois se o inimigo agora é outro quem deve combatê-lo não é apenas o Bope do Tropa 1 e por isso que a ótica da câmera aponta para quem vê ouve... neste caso nós! O belíssimo passeio panorâmico por Brasília enquanto ouvimos Nascimento promover uma reflexão coletiva e ideológica é o ápice do filme, um dedo incômodo e bem firme apontado na cara de cada um que atravessa os dias vendo telejornais e se fazendo acreditar que os problemas “dos outros” são “dos outros”. Não, “parceiro”, o problema é nosso. E a apatia é o lubrificante que torna essa engrenagem tão macia com ruídos quase imperceptíveis, nos tornando seres capazes, mas imóveis.

  
Paralelo a esse sentimento vem a alegria de assistir uma produção cinematográfica tão madura e completa. Um casamento feliz entre atores, roteiro, direção e produção e outros elementos técnicos como edição, trilha e sonoplastia. Não há como não exaltar um filme com esta qualidade e cuidado e principalmente, se sentir orgulhoso por ele. Isso porque ele revela que temos condições de fazer um cinema atual, ágil, inteligente e primoroso. Não é exagero algum classificar Tropa de Elite 2 apenas como o melhor filme do ano, mas torná-lo um legado cinematográfico e social extremamente importante. O fechamento do filme, com o abrir dos olhos do filho do Capitão somado a canção “o calibre” dos Paralamas do Sucesso, enquanto sobem os créditos, é o prelúdio perfeito para que saiamos da sala de cinema com sentidos atentos e alertas para as questões estruturais do nosso País. Desejo apenas que este respirar seja constante e não apenas vivo enquanto o calor do disparo incipiente de Padilha alcança nossas mentes fatalmente anestesiadas.
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